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Há mais na leitura que os olhos podem ver

O seguinte artigo, publicado originariamente em 1995 trata de como o processo de aquisição de leitura é muito mais do que decodificar palavras. Apesar de ter sido publicado nos EUA e estar inserido no contexto de educação daquele país, acreditamos que o mesmo cenário tem se evidenciado no Brasil, e de forma cada vez mais preocupante. Jovens que chegam ao ensino superior sem habilidade de leitura, interpretação e pensamento crítico. Aqui, a autora analisa o processo de aquisição da leitura em uma escola tradicional e em uma escola waldorf.

Vale a leitura. Se quiserem, deixem seu comentário para sabermos o que vocês acharam.


Todos aqueles que entram em contato com a Pedagogia Waldorf certamente percebem quão bela ela é: dos encantadores brinquedos naturais e dos temas das épocas do ano, nas turmas de jardim de infância, aos incríveis desenhos coloridos nas lousas das classes do ensino fundamental.  Visitantes e potenciais pais apreciam o surpreendente conjunto de criações artísticas realizadas pelas crianças – as aquarelas e desenhos, os animais e bonecas de tricô, os cestos de vime, as formas modeladas em cera de abelhas, somente para listarmos alguns pontos.  A música que as crianças tocam, suas canções e suas maravilhosas brincadeiras são realmente impressionantes.  É de se admirar, também, os cadernos de matéria, escritos e ilustrados pelos alunos, livros que artisticamente refletem o rico currículo das escolas Waldorf.  

E, é claro, não é possível deixar de notar as felizes expressões nos rostos das crianças. 


Mas, invariavelmente, levanta-se a questão sobre como e quando se ensina leitura às crianças das escolas Waldorf.  A crescente preocupação de nossa sociedade acerca do declínio das habilidades de leitura é tão profunda que, subitamente, todas as maravilhas e belezas da educação Waldorf desvanecem sob a névoa dessa discussão.

“As escolas Waldorf têm uma estratégia lenta para a introdução da leitura”, dizem as pessoas.  

“Alunos Waldorf não são ensinados a ler e escrever


no jardim de infância como crianças de outras escolas”, dizem outros.  

Como mãe de 4 alunos que frequentam uma escola Waldorf, frequentemente escuto tais comentários e, em todos os casos, um brado de protesto brota dentro de mim: “Olhem com mais profundidade!” , é o que quero gritar.  


A habilidade na leitura requer muito mais do que parece à primeira vista. As pessoas geralmente concebem a leitura como a habilidade em reconhecer a configuração de letras dispostas numa página e em pronunciar as palavras e frases nelas representadas.  Esta concepção atém-se ao lado mecânico e mais exterior, portanto mais fácil de se perceber, associada à atividade da leitura.  Assim, quando se fala sobre ensinar à criança ler e escrever estamos nos limitando à decodificação de símbolos que representam sons e palavras.  


Já lecionei por vários anos em escolas,  públicas e particulares, que seguem a metodologia convencional.  No jardim de infância as crianças com menos de 5 anos são instruídas a memorizar o alfabeto – um conjunto de símbolos abstratos – e a aprender os sons associados a eles.  Tal processo, chamado de “aptidão à leitura”, é estéril e abstrato, alheio à natureza da criança pequena.  


Nas primeiras séries da escola primária, as crianças continuam a exercitar o aspecto mecânico mais exterior da leitura.  Alunos consomem longos períodos de tempo lendo textos simplórios que correspondem ao patamar de suas capacidades de decodificação.  Cartilhas e livros contêm histórias e informações escritas com vocabulário limitado e frases de estrutura simples.  Há neles muito pouco que possa inflamar as jovens fantasias, que provoque admiração ou que estimule a simpatia pela beleza e complexidade da linguagem. 

Quando esses alunos alcançavam a quinta ou sexta série, todos eles eram capazes de decodificar as palavras escritas, com diversos e variados graus de fluência.  Alguns até eram bons leitores, mas, para muitos de meus alunos, as palavras e sentenças não se completavam para formar um conjunto coerente.  Eles tinham dificuldade para compreender ou recordar o que haviam acabado de ler.  


Superficialmente, esses alunos pareciam estar lendo.  Entretanto, com tal limitada compreensão, pode isso realmente ser chamado de “leitura”?  Claramente, a leitura é muito mais do que isso que nos acostumamos a ver! Além do processo superficial de decodificar palavras em uma página, há ainda a correspondente atividade interior a ser cultivada para que uma verdadeira leitura possa ocorrer.  


Atividade Interior da leitura


Os professores Waldorf chamam esta atividade de “vivenciando a história”.  Quando uma criança está vivenciando uma história, ela forma cenas da sua imaginação no seu interior, em resposta às palavras.  Através da habilidade de formar imagens mentais, de compreender, a criança vê sentido na atividade de leitura.  Sem esta habilidade, a criança pode muito bem decodificar as palavras em uma folha de papel mas continuará sendo funcionalmente iletrada.  


Obviamente, professores não-Waldorf reconhecem a importância da atividade interior da leitura, também.  Eles se referem a ela como habilidade de compreensão na leitura.  Nas séries mais avançadas do ensino fundamental, um esforço tremendo é despendido na tentativa de expandir nos alunos o vocabulário e, de alguma forma, exercitar a compreensão.  É uma tarefa árdua, principalmente como consequência do ensino prévio e precoce da leitura, fora de sincronismo com as capacidades naturais da criança.  


O professor das séries mais avançadas tem que lidar com os problemas de compreensão da leitura e também com a tremenda antipatia em relação à leitura que assola os jovens com dificuldades.  É muito difícil dar aulas a alunos de quinta ou sexta séries que tenham dificuldades com compreensão da leitura, com a construção de imagens mentais.  Esta capacidade interior parece nunca ter se desenvolvido neles.  


Por outro lado, crianças do jardim de infância e das primeiras séries, se deixadas desimpedidas, permanecem naturalmente ocupadas desenvolvendo, interiormente, cenas imaginativas.  Estas crianças adoram ouvir histórias e, verdadeiramente, vivem no reino visual da imaginação.  É muito trágico, em muitas escolas, ver as crianças mais novas sendo desviadas do desenvolvimento e fortalecimento de suas capacidades interiores, tão essenciais à verdadeira leitura, em direção à aprendizagem de símbolos estéreis e abstratos e as habilidades de decodificação.  


Vocabulário


A mesma afirmação pode ser feita para o enriquecimento do vocabulário.  Todos  sabemos que a jovem criança facilmente desenvolve seu senso linguístico e que seu vocabulário se expande rápida e inconscientemente.  Elas escutam novas palavras em histórias e conversas e, de alguma forma, captam o significado delas.  Elas podem até não conseguir dar definições “de dicionário” a essas novas palavras mas, misteriosamente, novas palavras se encaixam nas imagens que fluem através da mente da criança quando ela escuta histórias.  


É angustiante saber que nas primeiras séries escolares a maioria das crianças não é exposta à rica e complexa linguagem, simplesmente porque esta não seria compatível com as capacidades limitadas de decodificação da criança.  Justamente no período que suas mentes estão mais abertas à aquisição da linguagem, elas permanecem na escola, então, convivendo com vocabulários artificialmente limitados!  Certamente, a construção do vocabulário é um processo gradual durante os anos escolares e além deles.  Entretanto, é muito mais fácil para as crianças maiores aprenderem novas palavras se elas já tiverem passado pelo processo de desenvolvimento do senso lingüístico, de um extenso conjunto de palavras e de imagens mentais sobre as quais será construído o novo vocabulário.  


Ensino Precoce


Aparentemente, o crescente problema de analfabetismo funcional observado neste país [EUA] não é causado pela falta de capacidades técnicas de decodificação.  Para a maioria das crianças com dificuldade de leitura, há, sim, uma crise na compreensão, uma crise amplamente causada pela introdução precoce de capacidades de decodificação e pelo desconhecimento das poderosas ferramentas oferecidas pela imaginação e pela atividade artística que são veredas naturais de aprendizagem para crianças nos primeiros períodos escolares.  Ironicamente, esforços  mais contundentes e ainda mais precoce no desenvolvimento de habilidades de decodificação são a única cura hoje oferecida pelos organismos educacionais, o que apenas agrava mais ainda o problema.  


O método convencional de ensino da leitura deve ser virado ao avesso com o intuito de aproveitar as vantagens do desenvolvimento natural das capacidades de aprendizado das crianças.  É precisamente isso o que ocorre nas escolas Waldorf.  Nos primeiros dias do jardim de infância, crianças nas escolas Waldorf começam a aprender a ler.  Verdade seja dita, não são os aspectos técnicos, secos e externos da leitura que elas são incentivadas a realizar.  Ao invés disso, elas são mantidas em contato com os aspectos interiores muito mais importantes da leitura.  


Ao trabalhar com real conhecimento sobre a criança em desenvolvimento, os professores Waldorf começam o ensino da leitura através do cultivo, na criança, do sentido da linguagem e de suas capacidades em formar imagens mentais.  Imagens verbais vívidas e o uso de uma linguagem rica são constantemente empregados na sala de aula.  Vocabulários difíceis e sentenças com estruturas complexas não são evitadas durante as atividades de contos de fadas e fábulas.  As crianças cantam e recitam um vasto repertório de canções e poemas que muitos acabam decorando.  As crianças vivenciam um mundo interior de imagens e fantasias, totalmente inconscientes de que elas estão desenvolvendo as mais importantes capacidades necessárias para a leitura compreensiva, para ler e entender.  


Elas aprendem naturalmente e alegremente.  Histórias, canções e poesia não se findam no jardim de infância.  Rudolf Steiner nos indica que crianças entre as idades de 7 a 14 anos têm, acima de tudo, o dom da fantasia.  Assim, somente há sentido no fato das crianças aprenderem melhor se o currículo é apresentado de maneira a cativar a imaginação.  Em seu livro “Kingdom of Childhood”, Steiner diz “Devemos evitar uma aproximação direta às letras convencionais do alfabeto que são utilizadas na escrita e na imprensa do homem civilizado.  Antes, devemos guiar a criança de uma forma vívida e imaginativa através dos vários estágios que o próprio Ser Humano percorreu na história da humanidade”.  


Qual é o tempo da leitura e da criança?


Surpreendentemente, crianças Waldorf apreendem primeiramente à parte difícil sem se darem conta disso!  Eles vivem as histórias, criam imagens interiores, e compreendem as palavras.  Então vem a parte fácil: aprender a decodificar letras, que não são mais estranhas e abstratas, e ler as palavras escritas.  

O primeiro livro que minha filha Anna leu, quando finalmente aprendeu a ler, não foi uma cartilha chata, mas um belo conto de E. B. White "A Teia de Charlotte-Web".  De fato, ela aprendeu a decodificar mais tardiamente que seus colegas que frequentavam a escola convencional.  Mas ela aprendeu a ler fluentemente, com compreensão e prazer, muito mais cedo que a maioria deles.  Preste atenção nos dramas sofisticados e poemas que lêem os alunos Waldorf das séries mais avançadas.  Preste atenção a uma peça de Shakespeare apresentada por crianças da oitava série e você verá a sabedoria da didática Waldorf em relação à leitura.  


Utilizando um verdadeiro conhecimento do ser humano, uma real compreensão dos estágios de desenvolvimento infantil, o professor Waldorf é capaz de educar com métodos que permitem desabrochar prazeroso das crianças.  Como Rudolf Steiner diz, “É inteiramente real o fato de que o verdadeiro conhecimento do ser humano pode soltar as amarras e libertar a vida interior da alma e trazer o sorriso a nossas faces”.  


Por Barbara Sokolov - tradução livre por Edigar Alves  

Rudolf Steiner, "The Kingdom of Childhood".  Introductory Talks on Waldorf Education Anthroposophic  Press, 1995, p. 23 2 lbid, p. 22  Revista Renewal:   Spring Summer 2000, Volume 9  Number 1


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